25 abril 2008

Águas passadas moem moinho

Dezessete meses depois ele fazia o mesmo caminho conhecido. Após treze horas de avião, seis de ônibus, dois metrôs e um táxi, ele virava a última das nove quadras do loteamento.

Tocou mais uma vez a decorada campainha, lembrando da primeira vez.

Ela abriu a porta, e a boca de espanto, ao vê-lo ali, maltrapilho, mal dormido, um pouco bêbado e com a cara limpa.

Tentou falar algo quando ele, olhando nos olhos, exclamou:

- Eu só vim aqui pra dizer que me importo!

E saiu caminhando lentamente.

16 abril 2008

Reclames

Alguma coisa se perdeu no intervalo. Alguma coisa sempre se perde no intervalo. O primeiro toque, o primeiro passo, a cena inicial, o desfecho de tudo. A resposta certa sempre vem depois, o fim do salário sempre vem antes, mulheres e crianças primeiro, salve-se o que puder. Entre dois instantes imprevisíveis, cortes e planos longos, pausa no ponto de fuga a falta de perspectiva. A vida vista do outro lado da tela abre uma janela ao porvir, esse danado irrascível. E por um lapso de segundo frenético, a possibilidade desacontece, desacontecendo. Todos os castelos de areia, sólidos em sua contemplitude, se desmancham na primeira marola. Os exércitos de probabilidades convocadas já não entram em campo, e a indecisão vence o medo ou perde a batalha. Alguma coisa sempre se perderá no intervalo.

08 abril 2008

Piano bar

E Luiza era tocada ao piano, enquanto ele a esperava no bar do hotel em Belo Horizonte. Ela não viria, ele sabia, mas aquela, ah, aquela música. O barulho do gelo batendo no cristal do uísque estava no tom, ele colocou aquela roupa casual descolada pensando em ser alguém que não era, esperando alguém que não viria. Pediu um cigarro emprestado e depois se arrependeu, fingiu que mandava mensagens no celular, começou a escrever um roteiro em um guardanapo.

Foi embora duas horas depois, ao som de Carinhoso.

03 abril 2008

Sobre não lidar bem com críticas

Entre tipos e arquétipos é necessário fazer uma escolha, ainda que esta seja não escolher nada. Omissão também é ação. Usa-se diferentes personas em diferentes situações, e colocar um pouco de tinta colorida aleatoriamente sobre a máscara, dizendo que inovou e é distinto, é só poeira retórica de auto-afirmação.

O velho clichê misantropo reinventado pode até cair bem para o concreto cinza de São Paulo, mas isso também é clichê. O underground, assim como a arte, caminha de mãos dadas com o capital, ainda que ambos o desperezem. Meias coloridas, roupas nada monocromáticas compradas em brechós perdidos, e muita pose para parecer o grande-intelectual-andrógino-com-óculos-quadrados-moderninhos podem fazer sucesso na baixa Augusta, onde todos são iguais e citam livros e autores que não leram ou não entenderam, só porque ninguém os conhece.

Mas o fato é que sua modernidade não te livra de estar tão sozinha e perdida quanto um qualquer nessa cidade, Clarice Linspector é um saco, e eu prefiro a breguice elegante das curtibanas à sua pose oca de underground urbana.