26 fevereiro 2007

Restos para viagem

- Com licença, satisfeito?
- Não, não estou nada satisfeito! Queria um país mais justo, com menos desigualdade social, políticos mais honestos, cidadãos mais conscientes, mais educação e menos violência, queria que imbecis com microfone e câmera desparecessem da tevê, menos entretenimento cretino e de baixo calão, mais saúde, menos irresponsabilidade, mais compreensão, mais esportes, menos lixo cultural importado, mais discussões pertinentes, menos BBB, mais jornais independentes, menos mídia cooptada, mais conteúdo e menos forma, mais rodas de assuntos interessantes, menos gente falando só de trabalho, mais vida e verde, menos poluição, enfim.... aí talvez eu ficasse satisfeito, ok?
- Tá certo, senhor. Mas... posso recolher os pratos?
- Pode. Mas espera.

12 fevereiro 2007

Conselhos vários para um futuro filho

- Tudo é energia.

- Só os diamantes são eternos.

- Não existe gol feio. Feio é não fazer gol.

- Sempre amarre os cadarços antes de entrar em um banheiro público.

- Nunca, eu disse NUNCA invada a Rússia no inverno.

02 fevereiro 2007

La metà di niente

Marcela só queria chegar em casa mais cedo, só desta vez. A rotina canhestra não perdoou a sexta-feira. Pelo contrário, parece que tudo de ruim acontece na sexta, depois das cinco. E haja saco para ficar no escritório. Sair moída às oito da noite matou o cinema, o happy hour, e o começo da novela. Tinha um pacote de bisnaguinhas e um filme pela metade como companhia. O namorado no interior que esperasse, hoje ela não iria ligar.

O som da chave entrando na porta parecia um alívio. Gostava de chegar com o apartamento vazio, não acender nenhuma luz, e perambular pelo escuro, arrumando pequenas coisas inúteis, como um fantasma assombrando a própria casa. Fumou um cigarro no breu da área de serviço, estranhamente a melhor vista do apartamento. Regou as plantas, recolheu a roupa do varal. O telefone tocou. Atendeu ainda um pouco zangada, saco, ele que ligasse amanhã. Era a sua mãe. Ligou para reclamar do pai, que, ora só veja você, deu para ter amantes depois de velho. Quando tudo estava sossegando, veio o viagra, esse ingrato. Ainda vendem o remédio como a alegria da terceira idade. Só se fosse para os homens, porque menopausa não é brincadeira. Marcela ouvia tudo ausente, pontuando o relato com ahãs e não digas.

Marcela já havia lavado toda a louça, arrumado a cama e ajeitado todos os livros da estante, quando se lembrou que havia uns vinte minutos que ela não dizia algo para concordar com a mãe, prestou atenção na frase que dona Alvira (esse era o nome pelo qual chamava sua mãe depois de adulta) quase chorava ao telefone:
- Essa não é a vida que eu sonhei para mim. Depois que as crianças foram embora (as crianças eram Marcela e Adriano, que já haviam saído de casa faz quinze anos), a casa ficou vazia. Seu pai deu para beber e jogar no clube com os amigos, e agora vem com essas de amante. Essa não é a vida que eu sonhei para mim, eu iria ser executiva, tinha toda uma carreira pela frente, passei no concurso da Caixa, eu tinha um sonho!
Marcela, com o saco explodido, interrompe a choradeira materna para falar pela primeira vez em quarenta minutos de conversa:
- Mas mãe, o que você fez pelo seu sonho hoje?