13 fevereiro 2009

Ao longe, com azeite

- (...) Ora, direis, ouvir estrelas? Não, não as ouço! Não, não as vejo! Não aqui, onde elas deveriam abundar, por ofício e obrigação. Não nesta Casa. Talvez esse seja o problema...

Disse isso, e desceu do pinga-fogo da Câmara, ovacionado ao final de seu discurso. Aplausos emocionados até de opositores, há tempos não havia um orador de tamanha verve naquele púlpito. Que desenvoltura! comentavam os deputados naquela sessão atipicamente lotada devido à votação histórica da que ficou conhecida por Lei da Educação.

Um dos mais jovens deputados a se eleger por um partido independente em toda a história, foi o autor do projeto de lei que pretendia federalizar a educação. Mais conhecido pelo apelido de Doutor, devido ao grau precocemente conquistado na carreira universitária, tornando-se professor da mais reputada universidade do país. Seu passado ilibado e sua plataforma simples conquistaram o eleitorado letrado. Bradava, sempre que possível, seu slogan de campanha:

- Educação é uma questão de Estado, não de mercado.

Vestia-se sempre de preto, era taciturno, cabelos curtos, admirado pela correção e honra, e tinha a fama de incorruptível. Já ocupara alguns cargos públicos, tendo se destacado em todos, e agora alçava voos mais altos.

Era conhecido por sua obra jurídica, inovadora e rigorosa, escrita com fluência e estilo. Um cinismo rápido e ironias eruditas perpassavam seu texto, que era referência até no exterior. Era versado em filosofia e latim, citava Virgílio de cabeça, com propriedade.

Mas em uma praia diletante ele já planejou a revolução. Os longos cabelos faziam sucesso com as meninas mais intelectuais, e a pose descolada ajudava muito. Usava conga nacional, enchia a cara com vinho barato. Chegou a comprar uma arma para a revolução vindoura, mas a trocou por uma coleção rara de discos do America. Borracho, fazia lista dos primeiros burgueses que seriam fuzilados, sempre iniciando com seu professor de matemática da sexta série. A lista terminava invariavelmente com o técnico da seleção, e assim foi por gerações e gerações de listas.

Naquele tempo ele não era jurisconsulto, tinha uma barba e estilo escancaradamente copiando Che. E escrevia poesias. Sim, ele era. Magro, um quê de Trapo, andava com um caderno pautado e uma bic roída nas pontas. Nos bares dos campi, subia nas mesas e gritava que en la lucha de classes todas las armas son buenas: Piedras, Noches, Poemas.

Só por duas vezes alguém riu, identificando Leminski. Estava acostumado a falar para poucos. Talvez uns dois deputados ou mais identificaram Bilac. Essa era sua sina.

O tempo é o carrasco do sonho, o senhor do nosso inverno. Ele envelheceu, enveredou por outros caminhos. Raspou o cabelo, comprou terno, aderiu.

Ele, o mesmo que já disse que o homem é uma diarréia de deus. Ele, o mesmo que buscava o destino sob sete véus. Ele, o mesmo que conquistou 17 meninas diferentes dedicando a mesma poesia, “feita na hora”: - As palavras só me dizem você...

Trancado no quarto, ele maquinava. A labuta, a mais vã, gerava frutos. Durante anos ele executou seu plano.

Naquela noite, a polícia jamais imaginou encontrar, por debaixo daquele capuz, o deputado Doutor. Spray na mão, a moto ligada. Quatro e meia da manhã. O deputado terminava de assinar a pichação. Finalmente haviam encontrado o meliante que durante anos pichou poesias anônimas em propriedades privadas.

A Função Social do Espaço Urbano. Esse foi o nome da sua tese. Essa foi sua defesa. Escrita de próprio punho. Três editoras especializadas ofereceram rios de dinheiro para publicá-la. Ele aceitou a maior oferta, e destinou todo o dinheiro à Defensoria Pública. Não precisava do dinheiro. Nem chegou a ficar um dia na cadeia. Dizem que foi só de pirraça, para citar para o delegado, durante duas horas e meia, todas as leis que foram infringidas em sua prisão, a jurisprudência a seu favor, e terminar a explanação fazendo um apanhado da evolução de toda a filosofia do direito, dos pré-socráticos até hoje.

A prisão lhe rendeu uma notoriedade nacional instantânea, que lhe custou a cadeira na academia. Suscitou questionamentos. Afinal, ele tinha o direito de escrever no muro dos outros? Se era poesia, valia? Não seria apropriação indébita? Vandalismo? Romance? Porquê não publicava um livro? Porque ocupar e produzir no espaço alheio?

A carreira política foi um misto de vocação e alternativa. Agora era tarde. Seu projeto de lei seria votado, ele salvaria o futuro do país, seu bem mais precioso. A educação. Ele seria lembrado para todo o sempre.

Pouco antes do início da sessão histórica, ele foi informado de que o projeto não passaria. Disseram que era bom, bem fundamentado na teoria, e economicamente viável, impecável. Mas não havia interesse político.

Ao subir no púlpito, ele encarou o plenário com raiva, e começou seu discurso disparando. Uma atrás de outra, as palavras se encaixavam perfeitamente. Cada frase demolia um mito, e em nenhum momento ele deixou de criticar profundamente todos os seus pares. O discurso foi pura prosa poética. Ele pichou na história a mais dura crítica jamais feita naquele recinto. Teria ele o direito de, mais uma vez, pichar a propriedade alheia com sua poesia?

Um novo Lacerda? Um orador de esquerda? O iconoclasta necessário? O conformista diletante? Avaro? Santo? não se sabe ao certo. A resposta jamais foi dada. Desistiu da carreira política, e sumiu do mapa.

Dizem que passou a pichar poesias em outras propriedades, em novos meios.

Alguém certa vez o encontrou na rua, e perguntou por onde ele andava.

Com o olhar vítreo no horizonte, ele respondeu:

- Ao longe, com azeite.

6 Comments:

Blogger Roger Dörl said...

um dia aprendo a escrever esses textos muito bons e muito longos só pra espezinhar alguém.

12:22 AM  
Anonymous Anônimo said...

Lindo. Pra não dizer o q já foi dito...

12:19 PM  
Anonymous Anônimo said...

Parabéns, little fish. Aproveite a Suécia. Não fica bravo, as coisas são diferentes agora. Mas o carinho permanece. Beijos

2:11 PM  
Anonymous Anônimo said...

Meu amigo:
contrariando sua mania de não fotografar,
lembro de mais um ano seu.

A data; eu não me lembro.

Mas, que valem as datas em um Mundo de efemeridades?

Hoje, é difícil encontrar pessoas que não pareçam macarrão instantâneo: estão todas prontas em três minutos.

Por isso, meu amigo amavelmente inacabado,
fique com meu abraço eterno.

alvaro santos

4:00 AM  
Blogger Vizionario said...

Você, ainda poeta.

Obrigado.

11:45 PM  
Blogger Ivy Farias said...

Pobre, você pode estranhar o que vou dizer, mas se lhe falta dinheiro sobra riqueza de palavras. Texto excelente, adorei!

12:08 AM  

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