16 julho 2017

Depois de hoje

O lápis meio apontado caiu entre duas caveiras secas, uma humana, a outra ele não conseguiu reconhecer. Pegou o lápis, ergueu os olhos, e viu ao longe o monte cinza, ainda a um dia de caminhada. Havia algo que lembrava uma estrada, talvez fosse romana, não dava para saber ao certo, os buracos e pedras tomavam conta do caminho. E como havia pedras no caminho. Ele desviava com calma, tomava cuidado para não esgarçar as sandálias de borrachas, nem tanto gastas. Ao largo da estrada, árvores secas entre pedaços de grama verde, e buracos. E pedras. O que havia sido casas, ao longe, moinhos indecifráveis. O violão pesava um pouco nas costas, a mochila e o caderno de escrever também. Tudo deitava. Na natureza, tudo deita. A verticalidade parecia um desafio. Apaziguado. Menos o monte cinza, agora mais perto. O suor molhou seu antebraço, mas nem os mosquitos ousavam desafiar aquele nublado opressor, químico. Desolações do trecho, ele seguiu distraído, vencendo obstáculos, e pedras, e buracos. Em uma tábua antiga, pela metade, uma inscrição em quéchua. Não lembrava muito bem como sabia que era quéchua, mas não havia qualquer dúvida sobre isso. O que foram catedrais pareciam espanholas, mas a tundra ainda branca ao longe destoava. O monte cinza, olímpico, vertical, mais perto. Podia quase ver uma fumaça magra, cinza claro, saindo do outro lado da montanha. Alguma força para retirar um tronco do caminho, outra pedra, e algo que foi uma escada, com marcas recentes, iniciava a trilha. Talvez mas meio dia de caminhada circulando esta ponta da cordilheira, e chego. Os cabelos longos voavam mais forte com o vento alto e frio. Voavam deitados. A mágica da montanha é ser implacável sendo impecável. Aprendeu a respeitar, faz tempo, tudo o que era vertical. Empáfia. Ouviu um barulho mais perto, sentiu ser observado. A desolação do cinza não lhe chamava mais a atenção, nem a trilha já marcada, nem essa sensação de cores no estômago, antes da chegada. Ouviu vozes, falavam chinês, cochichos no vazio da tarde esvaída. O manto preto caía sobre o monte como uma mortalha, mas ele já sentia seu destino perto, o cheiro. A trilha se estreitava, o calor do centro da terra lhe confundia os sentidos, mas o caminho era um só. As imagens borravam um pouco no cinza escuro do céu, mas os contornos da entrada já estavam visíveis. A porta era um buraco na pedra. As vozes ficavam mais perto, e mais cochichadas. O caminho, uma antiga trilha de mineiros, estava parcamente iluminado, por uma luz no fim do túnel, utópica, que se distanciava a cada passo. Mas, rumo a luz, em paredes de pedra cada vez mais estreitas, ele, agachado, passa por uma pequena fresta em formato de fechadura. Lá dentro um salão mal iluminado, com centenas, talvez milhares de pessoas, olhares assustados, descrentes, vazios, esperançosos, virulentos, nostálgicos, recém-nascidos, antigos, quentes, azuis, vermelhos, negros, melados, molhados, insanos, fechados. Milhares. Até que agachado veio um homem, dentes largos e perfeitos em seu rosto iluminado por uma vela, com o silêncio acompanhava cada passo seu, e diz, aliviado, mas sério:

- Você não sabe o quanto precisamos de poetas agora.